Tio Otto -quarta feira – 25 de agosto.
Ontem às 11:48h, já na cama,
recebi do Márcio a notícia: Primaaaaa papys se foi!!!
Meu tiu Otto, que completaria 95 anos no final de novembro, estava desde a semana passada no hospital, para receber cuidados paliativos para chegar nesse momento. Para ter algum “conforto” enquanto seu corpo ia encerrando todas as atividades. Como disse o outro primo, ele estava só esperando o Márcio chegar.
Meu primo Marcio, o filho mais novo, talvez o que viveu por mais tempo próximo desse pai que ele sempre quis tanto agradar, há anos morando em Ponta Grossa, tinha viajado em pequenas férias quando ele foi internado.
Meu tio foi um homem do seu tempo. Um homem reto. Um homem de família. Viveu conforme as regras, para a família. Sua forma de amar era cuidar e prover. Manter os filhos e até nós, os agregados. Eu, minha irmã e meus primos, sempre tínhamos em sua casa, abrigo e afeto.
Claro, no início, quando erámos todos pequenos, era minha tia que nos acolhia e estava próxima. Mas ele aceitava. E à sua forma, nos recebia e cuidava como um pai e nos estendia aquele afeto de homem de família, provedor. Era duro quando precisava.
Na praia, durante os 3 meses de cada verão, dos quais a maioria eu estava lá, vinha sempre ao final do dia, pois durante, estava em São Chico trabalhando. Foi dentista de várias gerações de homens, mulheres e crianças da cidade.
Para mim e minha irmã foi nosso pai substituto. Nas férias de julho que muitas vezes passei também em sua casa, enrabixada sempre, na minha prima mais velha, Sabrina, ele vinha à hora do almoço e depois de comer, tínhamos que nos comportar e diminuir o volume da algazarra enquanto ele fazia sua sexta.
Eu, sempre muito barulhenta e faladeira, volta e meia levava umas por estar atrapalhando seu sono. A tia nos dava as duras. Ele não dizia nada.
Nas festas de família, que eram sempre na casa da vó, onde morávamos minha mãe, meus irmãos e eu, vinha ele com sua enorme Chevrolet-Veraneio para Itajaí, com a trupe toda. E de vez em quando alguma galinha ou cabritinho, ainda vivos, para fazer o almoço da festa.
Quando a festa era em Florianópolis, na casa do Tio Luciano, viajávamos juntos naquela imensa caminhonete, que era quase um ônibus para nós. Ele passava em Itajaí peqgava a vó, a mãe, eu, Diná e Eduardo e lá nos íamos, todos juntos. Na frente ele guiando, a Tia Aparecida e a mãe. No Banco de trás a vó, o Hugo, a Sabrina, eu, e no bagageiro em cima de sacolas ou banquinhos, Cyro, Diná, Alexandre, Márcio e Eduardo (o Formiga, meu irmão mais novo, que quando bem pequenininho ia no colo, da mãe, da vó, ou de uma de nós). Todos ouvindo as fitas kassete com Demis Russeau, Abba, Beatles e outros sucessos da época.
No Natal, a chegada deles era, para mim, a mais esperada, muito por causa da Sabrina. A vó dizia que tínhamos que arrumar tudo por que os Cabrais iam chegar.E eles descobriam tudo. E era aquela festa mesmo.
Eles chegavam trazendo aquela montoeira de pacotes de presentes que eram todos colocados na sala junto à árvore de natal e do presépio que tinham sido montados na véspera, quando finalmente a mãe tinha alguma folga dos colégios onde trabalhava. A casa toda cheirando os biscoitos que tínhamos passado semanas ajudando a vó a fazer. As roscas natalinas, todas aquelas comidas deliciosas. Já o almoço do dia 24 era festa.
A tardinha, depois de banhos, gritos e ameaças (porque sempre havia brigas e aprontadas de toda aquela pirralhada), saíamos todos na Chalana – nome da Veraneio. Tio Otto levava a gente para fazer um “giro”- como diria o vô Corbetta, por Itajaí inteira, vendo as casas enfeitadas com as luzes de Natal, muitas com janelas e portas abertas deixando ver os coloridos Pinheirinhos, as decorações. Ele fazendo comentários discretos e ironicamente engraçados de algumas mais enfeitadas com exageros kitsch!
Depois de rodar toda a cidade, literalmente, estacionava na frente da casa e ficávamos por ali, na calçada, brincando e jogando, ele junto, à espera do som da campainha/sineta do Papai Noel, que tocava avisando que ele já tinha passado e poderíamos entrar cantando Otanembaum e Noite Feliz para depois podermos abrir os presentes.
Como ele era de família Luterana, não ia a missa, como todos nós éramos obrigados, sempre. Eu admirava muito aquilo. Até o invejava. Não pela missa em si, que até gostava daquele ritual, fórmulas e símbolos. Mas por ver a sua fidelidade à sua forma de credo, ou falta de. Ele as vezes ia, levava-nos e ficava à porta da igreja nos esperando sair. Ele sempre foi fiel. À sua maneira. Sua religião era outra. Professava na verdade, muitas fés.
Uma delas, era sem dúvida sua profissão. Exerceu religiosamente todos os anos que deveu, precisou, e se realizou. Depois que se aposentou, mudou-se para Curitiba, para viver próximo dos amigos de faculdade e de outra quase religião sua. O turfe.
Amava ver os cavalos, ir ao Jockey, fazer sua fezinha. Sempre com religiosa parcimônia, extrema dignidade e comedimento. Mesmo depois, quando não mais quase enxergava, seguia os Grande Prêmios e as corridas. Assinava o canal de Turfe e seguia pela TV e rádio. Conhecia os grandes nomes do Brasil inteiro.
E sua fé cotidiana era também professada no Jogo do Bicho. Ele que me ensinou a apostar. No terno seco, no milhar a seco, na centena, na dezena, no grupo. Como eu sonhava muito e falava mais ainda ele sempre me ouvia e dava palpites. Sonhou isso? Joga na cobra, esse número é o jacaré. Tem que jogar 3 dias seguidos. Num deles dá. Cada sonho vale 3 dias sempre. Até ganhou com sonho meu. Chegou a ganhar uma boa quantia algumas vezes. Nunca fazia jogo grande, ousado sim. Não ia ficar rico, mas não ia ficar pobre jogando. Sua grande fé era feita de pequenas apostas. Fé do dia-a-dia mesmo, pequenos bilhetes.
Sempre gostou muito de cachorros também. Sempre foram amigos. Teve vários e lembro especialmente do Quick, um enorme pastor alemão, de quem eu gostava muito e as vezes tinha medo.
Depois de aposentado quando ainda tinha uma visão considerável, nos meses de praia, andava por Ubatuba toda. Fiscalizando as obras das casas que iam crescendo ao redor da sua. Conhecia quase todo mundo ali nas redondezas. Os que não, ficava conhecendo logo. Dava palpites. A vila cresceu sob seus olhos.
Há já alguns anos, não enxergava praticamente mais nada. Mas nunca se dava por achado. Tinha seus métodos. Que nem sempre funcionavam mas manteve enquanto pode. Grande dignidade. Quem foi rei, nunca perde a majestade, dizia a vó Ignes. Algumas vezes descemos para Santa Catarina no meu carro. Eu guiando. Ele ia de co-piloto dando conta da estrada. E mesmo quando sentava atrás, queria dar conta e palpite de tudo o que se passava.
Com o passar dos anos sua visão externa piorou cada vez mais, voltou-se para dentro, uma síndrome não rara dessa mistura de idade com cegueira de longa data. Via formiguinhas e pequeníssimos bichinhos. Por tudo. Cismava. Deixava todo mundo quase louco, a tia especialmente. Que nunca quis contrária-lo cabal e diretamente. Contemporizava.
Ele foi fiel à vida até o último minuto. Só esperou o Márcio chegar e partiu ao encontro do Cyro, o filho que se foi tão prematuramente há anos atrás. Devem estar já preparando a festa no Prado Velho. Turfe de Gala, pompa de Grande Prêmio. Seus cavalos serão vencedores hoje. Dobradinha Raposo. O Cyro deve estar feliz. Nós guardamos a saudade e as lembranças. Penso na festa lá. Fica bem tio Otto. Meu pai de presente.