27 de julho meu dia dos Pais

 

 

Sexta feira, o dia do super eclipse, que só voltará a acontecer daqui há 105 anos, com Marte absolutamente próximo da Terra, de uma maneira que só estará novamente daqui há não sei quantos anos, foi o aniversário dela. Minha mãe.

Segundo aniversário dela desde que vim para cá. Segundo aniversário que passo concretamente a um oceano de distância dela.

Claro que liguei e lhe dei os parabéns e nos falamos um pouquinho. Ela me pareceu bem feliz, tranquila, satisfeita. Há pouco mais de um ano que está morando com minha irmã, que como uma quase mãe ou irmã mais velha está cuidando dela.

Antes mesmo de sexta feira comecei a preparar este post. Eu o queria muito especial. Já tinha pedido à minha irmã que procurasse fotos e andei fuçando nas que eu tinha. Escolhi várias que representam fases da vida dela que gosto de olhar.

As primeiras sete fotos são dela sendo o que era, ou o que queria ser. Uma menina doce e sonhadora formada no Normal, no Colégio das Freiras,  como todas as outras moças inteligentes  em sua cidade, que queria encontrar um bom moço para casar,  criar filhos e constituir família.

Ela era uma mulher do seu tempo. Ou , como disse, queria ser.  Até que a vida aconteceu e virou tudo.

A oitava foto, pequenina ali no canto, é ela recebendo o grau de licenciatura em Matemática e Física pela Universidade Federal de Santa Catarina. Acho que ela se formou numa das primeiras, se não, a primeira turma do Curso da UFSC. Imagino que não fossem muitas mulheres na sala. Mas ela tinha algumas amigas.

Lembro algumas coisas dessa época. Morávamos em Floripa, naquele apartamento da João Pinto, bem no centro. Ela estava sempre trabalhando. Mesmo quando estava em casa. Sentáva-se à máquina de costura e fazia vestidos e biquinis e pantalonas. Costurava para nós e para suas clientes. Saía muito. Ia à escola, e dava algumas aulas no Colégio das Freiras de lá.

Nessa época morávamos todos juntos. Ela, meu pai, minha irmã, eu e Neuza, a nossa empregada. Que fazia as coisas de casa.  Limpava a casa e cuidava de nós quando minha mãe saía. E eu não gostava dela. Porque sentia que ela não gostava de mim. Ou porque era ela sempre ali, onde eu queria minha mãe.

Mesmo assim, minha mãe era a presença na casa. Mesmo quando não estava. Ela ia e vinha o tempo inteiro e era sempre ela que estava ali para tudo. Resolvia tudo.

As vezes à noite, quando meu pai ainda não tinha chegado, eu ia para a cama dela e ficava deitadinha do seu lado enquanto ela estudava, sentada encostada aos travesseiros.Eu tinha uns 4 ou 5 anos e ali aprendi a gostar de matemática e trigonometria. Escutava ela estudar em voz alta enquanto enunciava os teoremas e resolvia as equações, enunciava as fómulas: seno, co seno, seno a co seno b. Secante, co secante. O quadrado da hipotenusa. Outro mundo mágico que se abria para mim e me acompanhava no sonho. Ela brigava muito com estas fórmulas, mas eu sentia que não era a sério. Ela brigava consigo mesma pela dificuldade que tinha. Mas eu acho que mesmo assim ela gostava muito daquilo. Hoje penso que aquelas constantes derivadas a mantinham segura, de que alguma ordem havia de haver no universo. Mesmo seu cotidiano sendo tão cheio de inconstâncias.

O Bacharelado ela deixou de lado. Era com menor tempo. Ela precisava da licenciatura plena,  para trabalhar, para ser professora. Voltou para sua cidade natal,  como uma mulher desquitada, fato um tantinho escandaloso para o lugar na época, continuou seu sonho, enviezado, de criar seus filhos.

Sem premeditar, virou “avant gard” de uma geração que tinha outros planos para suas sonhadoras. Me pergunto quanta consciência desse papel, ela teve ou tem ainda hoje.

Sei que ela passou tempos muito difíceis em toda sua vida de mulher adulta. Desde que casou. O sonho de princesa borralheira para ela não deu certo. O príncipe dela virou sapo muito rápido. Ou pior. Ela viveu pesadelos. Eu sei disso. Antes de voltar para a casa de seus pais, onde estávamos nós, suas filhas, ela ficou dois anos, tentando acertar os ponteiros com meu pai, terminando seus estudos, e pelo que ela conta foi um período terrivel na sua vida. Que hoje ela lembra com muitas mágoas. E eu fico muito triste por isso.

Eu queria muito que ela fosse capaz, e se eu pudesse, dar-lhe-ia isso de presente, de lembrar desse tempo, só o orgulho da garra que teve. De todas as terríveis batalhas que lutou e venceu. De todo o exemplo de coragem e força que ela deu para nós (seus filhos) e para tantas outras pessoas. Seus alunos e alunas, seus amigos e toda uma cidade pequena e provinciana que presenciou nela uma das primeiras exemplares dessa nova classe de mulher que surgia.

Fala-se tanto hoje em feminismo, em empoderamento, em novas formas de relacionamento e família. Sei que foi contra a sua vontate. Mas ela viveu tudo isso e muito mais quando, no Brasil e especialmente nas pequenas cidades como a nossa, isso ainda era muito tabu, muita ficção,  era apenas “pequenas notícias e assunto de revistas escassas”, que traziam novidades das coisas que iam pelo mundo distante, o tal Primeiro Mundo.

Ela foi, mesmo não querendo, esse modelo para mim. Ela foi a um tempo, nossa mãe, irmã, heroína, amiga e Pai. Então acho que faz sentido, que esse texto que iniciei para o seu aniversário tenha se concretizado hoje. No dia dos Pais.

Feliz dia dos Pais, Mãe.

Aprendendo

Foto 1964

Antes de morarmos no apartamento da João Pinto, no centro, onde o mar vinha lamber as calçadas e onde hoje a cidade estendeu seu espaço,morávamos na Agronomica, numa casinha com um pequeno quintal e um ranchinho no fundo do terreno que dava por cima deste mesmo mar. Ali também hoje é aterro do qual faz parte a Beira Mar Norte.

Naquele tempo, meu pai mergulhava da janela do ranchinho no mar da baia. Eu lembro muito pouca coisa dessa época. Mas lembro que achava aquilo o máximo. Eu queria poder fazer o mesmo. E brincando na pequena varanda ou pórtico de trás da casa saltava da muradinha, fazendo de conta que mergulhava do alto nas ondas. Um dia caí e quase quebrei o braço. Lembro que foi uma choradeira danada.

Outra coisa que lembro dessa época é de termos tido uma vizinha um pouco alemã que tinha um filho quase bebê mas um pouquinho mais velho que minha irmã. Sei que ele chorava sempre chamando pelo seu wut wut, eu quis saber o que era isso. Era o porquinho. Ele chamava pelo seu porquinho e o chamava em alemão. Já ali fiquei muito impressionada com aquele menino tão pequenino que conhecia uma outra língua.

Eu ficava sempre muito impressionada com as pessoas, de todas as idades, que faziam coisas que eu achava interessantes e legais. Eu queria poder fazer todas aquelas coisas. Falar linguas diferentes, ler livros e qualquer coisa que tivesse letras. Aplicar injeções e tratar as pessoas, examiná-las e saber dizer o que elas tinham ou não (como eu tinha visto o moço do hospital, vestido de branco, examinar meu braço e dizer que não estava quebrado, só torcido, o quê para uma criança da minha idade era a mesma coisa). E queria ter coragem e capacidade de saltar do alto e mergulhar no mar e sair nadando, como meu pai fazia.

Naquela época íamos à praia na baía mesmo. Era limpinho e as águas bem tranquilas. Meu pai saía nadando sem parar até ficar pequenininho lá no fundo. Eu queria muito ir atrás. Mas claro, não sabia como. E era só passar a água da linha da cintura pra minha mãe começar a ter chiliques me chamando pra beira da praia. Então ele se oferecia pra me levar junto com ele. Na garupa dele. Mas eu não queria. Tinha medo disso. Daí ele pegava minha irmãzinha que era pouco mais um bebê e ela ia toda feliz lá pro fundo com ele. E eu ficava emburrada na beirinha ao lado da minha mãe.

Sempre tive essa mania de querer fazer as coisas sozinha, ou por mim mesma. Claro, com meu pai tinha uma insegurança devida a outros fatores, que um dia conto em outra história. Ou não. Mas sei que sempre fui assim metidinha a saber e querer fazer de tudo sozinha, sem aceitar ajuda. Era extremamente teimosa. E claro, perdi muito com isso. A vida toda. Levou muito tempo para eu começar a me tocar que se me abrisse, confiasse e aceitasse ajuda, muita coisa poderia ser mais fácil. Muito tempo mesmo.

Ainda não sei

Quando eu era pequena e morávamos em Florianópolis, num pequeno edifício bem no centro, em que o mar vinha lamber a rua de trás e podia ser visto da marquise e da beira da calçada, respingando a gente nos dias de vento sul, eu tinha um vizinhozinho, que era um pouco mais velho ou novo que minha irmã, já não lembro, e tinha metade da minha idade. Eu tinha quatro anos e me achava já meio velha para isso ou para aquilo.

Ele era um menininho chorão e chatinho, nem sei mais seu nome, se é que um dia o soube. Ele vinha, trazido pela babá, sentar nos degraus da escada quase em frente a nossa porta. E ele fazia uma coisa que me deixava a um só tempo, admirada, fula da vida, envergonhada e invejosa. Ele sabia de cor todos os estados e capitais do Brasil de então.

Era o ano de 65, eu acho, 1965: século passado. Ele não falava corretamente e não sabia nem contar até 2. Mas recitava aquilo de frente para trás, sempre que alguém pedia. Se exibia com aquilo, feito um papagainho.

Meu pai trabalhava como jornalista ou radialista ou os dois, não sei bem. Ele quase nunca estava em casa e nas horas de almoço e janta devíamos ir para baixo da mesa para chamá-lo para que se apressasse. Claro que isso nunca funcionou e deixou em mim um terrível hábito de estar sempre atrasada, mas isso é outra história.

Quando ele estava em casa lia ininterruptamente pequenos livros de bolso com histórias de Farwest. Esses livros só tinham letras. Milhares de formiguinhas pretas pelas quais ele passava os olhos e desatava a rir esporadicamente. Eu observava aquele movimento e atitude e depois imitava-o na frente do espelho tentando reproduzir seu movimento de olhos e suas caras e fingindo entender o significado daquelas coisinhas pretas. Deixava todo mundo louco com perguntas sobre as letras, a com b dá o quê? P com r faz como? Era obcecada.

Tínhamos na sala uma grande biblioteca cheia de belos livros de capa dura com lombadas vermelhas, verdes, azuis e douradas. Minha mãe lia esses livros. Com mais elegância. Alguns deles tinham figuras lindíssimas, eu adorava. Mas ainda assim eram um mistério para mim. Eu os namorava e folheava ávida por ser capaz de decifrá-los.

Eu tinha meus brinquedos favoritos. Um kit de médico, com maletinha, estetoscópio, caixinha de comprimidos, curativos e injeção. Algumas bonecas que viviam pintadas de vermelho e esparadrapadas, ou enfaixadas com tiras de pano; e uma porção de livrinhos com figuras coloridas que nem de longe eram tão interessantes como os que meus pais liam. Mas tinham letras grandes e mais fáceis de reconhecer. Eu preferia os outros, incompreensíveis, mas amava-os também.

O primeiro que consegui ler sozinha chamava-se A Galinha Ruiva. E embora estivesse extasiada com a idéia de entender aqueles sinaizinhos, fiquei um pouco decepcionada com a história, bem menos interessante das que eu mesma tinha inventado e também daquela que minha mãe tinha lido. Ela emprestava cor e sentido aquilo que lia. Eu só lia as palavras. Ainda não desembaralhava seus sentidos.

Achei então que estava pronta e tinha que ir para a escola. Para utilizar a nova aquisição e ampliar meus poderes e assim chegar mais perto daquelas ações que invejava. Daqueles livros pesados de promessas secretas.

Assim começava a minha história de amor com a palavra escrita – o amor com a palavra falada começou antes de eu aprender a andar, aos nove meses de vida – ou é isso que me contam. E começava meu amor com os mistérios. Com as histórias. Com os livros. Com as pessoas. Com as pessoas nos livros e fora deles. Com as linguagens. Essa minha avidez voraz com tudo o que ainda não sei.

Amor e Ódio.