Sexta feira, o dia do super eclipse, que só voltará a acontecer daqui há 105 anos, com Marte absolutamente próximo da Terra, de uma maneira que só estará novamente daqui há não sei quantos anos, foi o aniversário dela. Minha mãe.
Segundo aniversário dela desde que vim para cá. Segundo aniversário que passo concretamente a um oceano de distância dela.
Claro que liguei e lhe dei os parabéns e nos falamos um pouquinho. Ela me pareceu bem feliz, tranquila, satisfeita. Há pouco mais de um ano que está morando com minha irmã, que como uma quase mãe ou irmã mais velha está cuidando dela.
Antes mesmo de sexta feira comecei a preparar este post. Eu o queria muito especial. Já tinha pedido à minha irmã que procurasse fotos e andei fuçando nas que eu tinha. Escolhi várias que representam fases da vida dela que gosto de olhar.
As primeiras sete fotos são dela sendo o que era, ou o que queria ser. Uma menina doce e sonhadora formada no Normal, no Colégio das Freiras, como todas as outras moças inteligentes em sua cidade, que queria encontrar um bom moço para casar, criar filhos e constituir família.
Ela era uma mulher do seu tempo. Ou , como disse, queria ser. Até que a vida aconteceu e virou tudo.
A oitava foto, pequenina ali no canto, é ela recebendo o grau de licenciatura em Matemática e Física pela Universidade Federal de Santa Catarina. Acho que ela se formou numa das primeiras, se não, a primeira turma do Curso da UFSC. Imagino que não fossem muitas mulheres na sala. Mas ela tinha algumas amigas.
Lembro algumas coisas dessa época. Morávamos em Floripa, naquele apartamento da João Pinto, bem no centro. Ela estava sempre trabalhando. Mesmo quando estava em casa. Sentáva-se à máquina de costura e fazia vestidos e biquinis e pantalonas. Costurava para nós e para suas clientes. Saía muito. Ia à escola, e dava algumas aulas no Colégio das Freiras de lá.
Nessa época morávamos todos juntos. Ela, meu pai, minha irmã, eu e Neuza, a nossa empregada. Que fazia as coisas de casa. Limpava a casa e cuidava de nós quando minha mãe saía. E eu não gostava dela. Porque sentia que ela não gostava de mim. Ou porque era ela sempre ali, onde eu queria minha mãe.
Mesmo assim, minha mãe era a presença na casa. Mesmo quando não estava. Ela ia e vinha o tempo inteiro e era sempre ela que estava ali para tudo. Resolvia tudo.
As vezes à noite, quando meu pai ainda não tinha chegado, eu ia para a cama dela e ficava deitadinha do seu lado enquanto ela estudava, sentada encostada aos travesseiros.Eu tinha uns 4 ou 5 anos e ali aprendi a gostar de matemática e trigonometria. Escutava ela estudar em voz alta enquanto enunciava os teoremas e resolvia as equações, enunciava as fómulas: seno, co seno, seno a co seno b. Secante, co secante. O quadrado da hipotenusa. Outro mundo mágico que se abria para mim e me acompanhava no sonho. Ela brigava muito com estas fórmulas, mas eu sentia que não era a sério. Ela brigava consigo mesma pela dificuldade que tinha. Mas eu acho que mesmo assim ela gostava muito daquilo. Hoje penso que aquelas constantes derivadas a mantinham segura, de que alguma ordem havia de haver no universo. Mesmo seu cotidiano sendo tão cheio de inconstâncias.
O Bacharelado ela deixou de lado. Era com menor tempo. Ela precisava da licenciatura plena, para trabalhar, para ser professora. Voltou para sua cidade natal, como uma mulher desquitada, fato um tantinho escandaloso para o lugar na época, continuou seu sonho, enviezado, de criar seus filhos.
Sem premeditar, virou “avant gard” de uma geração que tinha outros planos para suas sonhadoras. Me pergunto quanta consciência desse papel, ela teve ou tem ainda hoje.
Sei que ela passou tempos muito difíceis em toda sua vida de mulher adulta. Desde que casou. O sonho de princesa borralheira para ela não deu certo. O príncipe dela virou sapo muito rápido. Ou pior. Ela viveu pesadelos. Eu sei disso. Antes de voltar para a casa de seus pais, onde estávamos nós, suas filhas, ela ficou dois anos, tentando acertar os ponteiros com meu pai, terminando seus estudos, e pelo que ela conta foi um período terrivel na sua vida. Que hoje ela lembra com muitas mágoas. E eu fico muito triste por isso.
Eu queria muito que ela fosse capaz, e se eu pudesse, dar-lhe-ia isso de presente, de lembrar desse tempo, só o orgulho da garra que teve. De todas as terríveis batalhas que lutou e venceu. De todo o exemplo de coragem e força que ela deu para nós (seus filhos) e para tantas outras pessoas. Seus alunos e alunas, seus amigos e toda uma cidade pequena e provinciana que presenciou nela uma das primeiras exemplares dessa nova classe de mulher que surgia.
Fala-se tanto hoje em feminismo, em empoderamento, em novas formas de relacionamento e família. Sei que foi contra a sua vontate. Mas ela viveu tudo isso e muito mais quando, no Brasil e especialmente nas pequenas cidades como a nossa, isso ainda era muito tabu, muita ficção, era apenas “pequenas notícias e assunto de revistas escassas”, que traziam novidades das coisas que iam pelo mundo distante, o tal Primeiro Mundo.
Ela foi, mesmo não querendo, esse modelo para mim. Ela foi a um tempo, nossa mãe, irmã, heroína, amiga e Pai. Então acho que faz sentido, que esse texto que iniciei para o seu aniversário tenha se concretizado hoje. No dia dos Pais.
Feliz dia dos Pais, Mãe.